Por José Ricardo de Souza*
Um dos maiores desafios para qualquer cristão consiste em praticar os ensinamentos deixados por Jesus. A humildade, o desprendimento pelos bens materiais, a caridade, a busca da justiça, a coragem para denunciar os poderosos e sobretudo o amor a Deus e ao próximo, principalmente pelos mais empobrecidos. Poucas pessoas conseguiram reunir tantas virtudes e ser um anúncio vivo do evangelho como aquele homenzinho franzino de gestos simples e olhar decidido. Parecia um dom de Deus, e não era a toa que todos reverenciavam D. Hélder Câmara, "o amigo dos pobres, meu amigo e meu irmão", como afirmou João Paulo II, quando visitou o Recife.
D. Hélder foi um lutador incansável, um arauto da justiça, um escudeiro da solidariedade. Sua prática missionária sempre esteve voltada para os excluídos, para os pequeninos, para aqueles que não tinham vez, nem voz. Num país subdesenvolvido como o Brasil, as injustiças sociais gritantes revelavam o quanto estávamos distantes do verdadeiro reino de Deus, onde todos tivessem o mínimo para viver com justiça e dignidade. É nesse contexto que surge D. Hélder, um João Batista do nosso século.
Os tempos eram difíceis como nunca, nuvens ameaçadoras encobriam o sol da democracia. O Brasil era mergulhado num regime de força que os poderosos denominavam como Revolução de 1964, mas que hoje sabemos que não passava de uma cruel ditadura. Em meio às perseguições, torturas, censuras, D. Hélder usou seu carisma para defender aqueles que o regime condenava. O Arcebispo de Olinda e Recife desafiava abertamente um organismo perigoso e poderoso, que possuía todo o aparato necessário para calar o bispo, mas que não tinha coragem para atingir uma personalidade reconhecida internacionalmente como D. Hélder. Por isso, liquidaram seus colaboradores, como Padre Henrique, como forma de ameaçá-lo, metralharam sua casa, censuravam seus textos, e o rotularam como comunista, bispo vermelho, subversivo. Tudo isso foi inútil, nada, nem ninguém conseguia calar o bispo dos pobres. Talvez lembrasse Daniel atirado à cova dos leões, Hélder atirado num país miserável e injusto.
A Igreja, aos poucos era engajada na luta por justiça. Sob as luzes do Concílio Vaticano II, das Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, a Igreja reconhecia a "opção preferencial pelos pobres" como um caminho para a evangelização latino-americana, era a Teologia da Libertação que dava seus primeiros passos em busca de uma ação pastoral engajada com os oprimidos. D. Hélder teve um papel primordial nesse processo. Sua arquidiocese era um exemplo para os movimentos pastorais do Brasil e do mundo. O povo conscientiza-se e à luz da Bíblia discutiam seus problemas, organizavam-se em grupos e movimentos e acreditavam na construção de um mundo novo sem desigualdades nem injustiças. Era esse o rebanho do pastor D. Hélder, uma massa que sabia aonde queria chegar e acreditava nisso.
Por mais que disfarçasse, a Igreja não conseguia esconder sua face conservadora, tradicionalista, que não via com bons olhos a obra pastoral de D. Hélder, que já idoso requeria uma aposentadoria e abria espaço para a indicação, via Vaticano, de um novo bispo. Foi essa a brecha que os grupos conservadores precisavam. Quando todos imaginavam que D. José Lamartine substituísse D. Hélder, vem a surpresa, o substituto seria D. José Cardoso, de tendência conservadora. E a arquidiocese de Olinda e Recife nunca mais seria a mesma. A obra de D. Hélder foi paulatinamente destruída por D. José Cardoso. Seminários como o Instituto Teológico do Recife (ITER) e o Seminário Regional do Nordeste (Serene) foram fechados, movimentos e pastorais foram perseguidas e expulsas da cúria metropolitana, que funcionava na rua do Geriquiti, padres foram literalmente cassados e impedidos de continuar seu serviço nas comunidades, a exemplo de Reginaldo Veloso do Morro da Conceição, até a Comissão de Justiça e Paz foi dissolvida.
Não era possível aceitar a vitória do opressor, ainda mais que a obra não estava concluída, e D. Hélder não parou sua luta em favor dos oprimidos. Apesar da idade e do cansaço natural da vida, D. Hélder ainda teve forças para articular algumas campanhas. Primeiro, dirigiu-se contra a fome, depois foi a vez de condenar a miséria e propor seu fim até o ano 2000. As Obras de São Francisco, fundadas por seus colaboradores, desenvolviam trabalhos sociais nas comunidades, como o Tururu no Janga, e atendiam a crianças carentes e subnutridas. O sonho de uma sociedade justa cada dia ganhava mais adeptos, e mesmo desarticulada a "Igreja dos pobres" resistia como um sinal da presença do reino de Deus, o mesmo anunciado por Cristo, onde os pobres são os bem-aventurados, e os poderosos serão humilhados.
Aos noventa anos, D. Hélder encerra sua missão terrena. Ainda bem que tivemos tempo para prestar-lhe merecidas homenagens pela sua ação em favor dos pobres. As tardes no parque da Jaqueira, nunca mais serão as mesmas, quando nas apresentações da Orquestra Sinfônica do Recife, D. Hélder nos presenteava com sua honrosa presença, e como sempre era aplaudido de pé, pelo público.
Como cristãos sabemos de duas coisas importantes: a morte não é o fim, mas apenas o começo de uma nova vida, mais próxima de Deus; e que a luta pela construção do reino de Deus, apenas começou. Ou melhor, ela nunca terá fim enquanto houver pessoas sem pão, sem teto, sem saúde, sem educação e principalmente sem esperança. Pois da esperança vem o amor. Do amor vem o dom ... da paz.
📖 O autor é historiador e professor da rede pública de ensino.
📰 Artigo publicado no Jornal do Commércio, edição de 13 de outubro de 1999.
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